Maníaco do Parque- RESENHA DO FILME
A tentativa de construir uma ótica feminina esbarra num detalhe: o filme é pensado apenas por homens
O filme busca construir uma narrativa reparativa às mulheres, sobre o assassino e estuprador Francisco de Assis Pereira, dando o real protagonismo do filme à uma personagem feminina, a jornalista Elena. A personagem fictícia foi criada para ser o contraponto do assassino e trazer a voz das mulheres para o centro do filme. Parece interessante não é?
No entanto o filme falha em suas proposições de roteiro. Falha em construir um bom referêncial acerca de um criminoso como Francisco de Assis, pois deixa de fora alguns detalhes que fariam toda a diferença para a sua caracterização. E falha em dar voz às mulheres e vítimas, caindo em clichês baratos e numa retórica um tanto forçada de empoderamento feminino. O roteiro, a produção e direção são todas masculinas, o que esclarece um pouco a problemática.
O filme começa com uma prévia dos crimes cometidos pelo maníaco, deixando o espectador ciente de quem ele é desde o início. Não existe uma construção desse personagem, e o filme tenta a todo custo não humanizar a figura do assassino, descartando fatos de sua infância e juventude, e caindo no relativismo de que “monstros nascem monstros” tão comum em narrativas sobre criminosos considerados psicopatas. E aqui acho que o roteiro peca ao tentar construir esse dualismo simples de bem x mal, onde um homem apenas decidiu matar e estuprar do dia pra noite, sem quaisquer fatos que possam ser digeridos pelo público, não para justificar seus crimes, mas para destrinchar como homens comuns se tornam monstros.
Para a psicologia atual há todo um conjunto de fatores biopsicossociais que desde a infância, gera o fenômeno social conhecido como “serial killers”. É notadamente conhecido que principalmente homens [aqui entra a socialização masculina para a violência] se tornem assassinos em série. As mulheres são raras nesse tipo de crime e até mesmo o uso dessas categorização pode ser controversa, pois seus métodos, vítimas e formas de assassinar diferem muito das masculinas.
Ullisses Campbell, autor do livro "Francisco de Assis: O Maníaco do Parque" relata em seu livro a infância traumática de Francisco, a negligência que sofreu dos pais e seus primeiros crimes: a agressão à uma aluna e em consequência sua expulsão da escola, e uma tentativa de estupro. Aos 14 anos ele já trabalhava num frigorífico onde abatia bois com uma marretada na cabeça, conforme o escritor Ulisses, foi aí que ele adquiriu o gosto por matar, sentindo prazer em assassinar os animais. Com esse fato, a polícia concluiria mais tarde, que a posição que ele deixava as vítimas era a mesma dos bois após o abate. Essa situação é ocultada no filme, e a posição das vítimas é mostrada como apenas mais um detalhe sórdido do maníaco. Acho que seria importante pro público conhecer esse background do personagem. Outro fato que o filme deixa de lado é que possivelmente o maníaco era um homem autoginéfilo. Evento que daria mais dimensão ao enredo, e elucidaria alguns pontos da personalidade doentia dele. Décadas atrás era de senso comum a relação entre autoginefilia com crimes sexuais [quem lembra de “O silêncio dos inocentes?” ] mas hoje fazer essa correlação pode ser até considerado um “crime de ódio”, talvez por isso optaram por omitir esse ponto polêmico no filme.
Apesar de o diretor do filme, Mauricio Eça, afirmar em entrevista que o “objetivo do filme foi retratar a história das vítimas com respeito” O filme deixa pouco claro que houveram muitos mais mulheres sobreviventes que assassinadas. As vítimas sobreviventes são mostradas de forma breve em poucos menos de 5 minutos do filme, apenas chorando e se lamentando.
É esse na minha opinião, o MAIOR ERRO DESSE FILME.
ESSAS MULHERES SOBREVIVERAM. ELAS ENFRENTARAM UM SERIAL KILLER E SAÍRAM VIVAS. ELAS FORAM MAIS ESPERTAS, FUGIRAM, OU SEQUER FORAM CONVENCIDAS POR ELE. Essas mulheres SÃO HEROÍNAS e AJUDARAM a PEGAR O ASSASSINO. Elas mereciam ser retratadas como tal, e não chorando, frágeis e indefesas. Beira a misoginia representá-las unicamente dessa forma, retirando toda a agência que tiveram para lutar e escapar. O nome real das vítimas também não foi citado, não sei essa decisão envolveu questões de direitos autorais, mas fica essa lacuna.
Também é ocultado no filme os problemas de impotência do maníaco, que desdobrava na sua prática de necrofilia com os cadáveres das vítimas. Entendo que aqui quiseram talvez preservar as vítimas, mas há muitas formas respeitosas de contar essa história e não apagar os crimes que ele praticava com elas até depois de mortas.
A única vítima que teve sua história brevemente retratada no filme foi Raquel Mota Rodrigues, que teve o nome alterado para Cristina. Ela ligou para a prima para avisar que conheceu um homem que lhe ofereceu trabalho de modelo, mesmo alertada de que era perigoso pela prima, ela decidiu ir. No filme, eles colocam a prima falando com o assassino, mas isso não aconteceu na vida real. Para o público criar empatia é preciso ter uma conexão com o personagem, retratar sua história, torná-lo próximo do público e isso não foi feito com nenhuma das vítimas por que elas são apresentadas ao público apenas como vítimas, não existe um pré-contexto humanizando essas mulheres em suas vidas antes do assassinato.
Ao meu ver, para realmente ter um contraponto feminino, o filme poderia ter criado personagens que abarcassem algumas das histórias das vítimas sobreviventes, mesmo sem usar seus nomes verdadeiros, criando uma narrativa para elas anterior à de vítimas, partindo da vida delas, mulheres com sonhos, em vulnerabilidade financeira e que se deixaram levar por promessas de dinheiro alto. Seria muito mais interessante, e muito mais realista. Mostrar também que muitas sobreviveram, e a maioria não foi sequer enganada. Muitas mulheres não aceitaram a proposta do maníaco e identificaram o perigo. É preciso desmistificar que ele era “irresistível” para as vítimas. Ele convenceu e matou cerca de 10 mulheres, mas é possível que mais que o dobro dessas tenham escapado. Somente 13 sobreviventes procuraram a polícia.
O erro do filme ser pensado apenas por homens é que eles enxergam essas 13 mulheres apenas como vítimas. ELAS FORAM HEROÍNAS.
Aí entramos na jornalista Elena. Toda a tentativa de construir uma heroína através da dela é caricata. Numa tentativa de dar profundidade à personagem, somos apresentadas à irmã de Elena, uma personagem que aparece apenas para explicar narrativamente pro público sobre a psicopatia e validar o vínculo de Elena com o pai. A história da relação da jornalista com o pai é jogada sem razão e totalmente mal desenvolvida. A mãe, é inexistente. As duas mulheres do filme orbitam apenas ao redor dos homens. As vítimas estão em segundo plano, toda a obsessão de Elena é em descobrir a identidade do maníaco, apagando inclusive a voz das vítimas nesse processo, pois foram elas quem de fato ajudaram a polícia com seus relatos após escaparem dele. Ao final, a crítica que o roteiro tentou fazer do “ponto de vista da mídia” se encontra ali de forma anacrônica, em 1998, assim como em 2024, o ponto de vista da grande mídia ainda é o masculino, à começar pelo próprio ponto de vista do filme.
Pontos positivos: Toda a cenografia da São Paulo dos anos 1990 está ótima, a trilha com Charlie Brown também é nostálgica e ambienta bem a época dos crimes. O personagem de Francisco também é mostrado como alguém talentoso na patinação, e um bom trabalhador, inclusive convivendo com mulheres da família de seu chefe sem machucá-las, deixando claro que homens comuns e acima de qualquer suspeita podem cometer crimes terríveis.
A caracterização de Silvério Pereira está bastante sólida, ele convence o telespectador. Mas Giovanna Grigio não. Sua personagem além de mal construída, buscar não ser apenas anacrônica com a visão da mídia nos anos 1990, mas se perde na tentativa de empoderamento feminino que acaba centrado em homens e não nas vítimas.
Espero que para um próximo projeto do cinema nacional que busque “dar voz às mulheres” ao abordar um serial killer, eles comecem chamando mulheres roteiristas.